Entenda os motivos da crise na Venezuela
Por Gustavo Carino Rody, do Politize!
(John Moore/Getty Images)
A Venezuela passa hoje pela pior crise da sua história. Índices econômicos baixíssimos, instabilidade política e violência são alguns dos componentes desse mosaico. No meio da disputa está o povo, que sofre com a crise de abastecimento, sem produtos de primeira necessidade e com a escalada da violência, com o número de mortos disparando, principalmente nos embates entre os pró-governistas e os seus opositores.
O petróleo na política e na economia venezuelanas
A Venezuela, oficialmente chamada de República Bolivariana da Venezuela, é um país sul-americano que surgiu com o colapso da Gran Colombia em 1830. Durante o século XIX, o país foi governado por caudilhos regionais – que, em geral, são lideranças políticas carismáticas ligadas a setores tradicionais da sociedade, como militares e latifundiários. Por se tratar de uma forma de poder na qual o governante tem controle absoluto, o país passou por uma grande instabilidade política. Tais líderes eram, em sua maioria, militares que buscaram promover o setor do petróleo e permitiram algumas reformas sociais. Esse modelo durou até meados do século XX, quando houve a transição para o governo democrático em 1959.
A Venezuela é um país reconhecido pelas suas grandes reservas de petróleo e gás natural, descobertas no início do século XX. Por se tratar do sétimo maior produtor de petróleo do mundo, o setor petrolífero representa cerca de um terço do PIB, aproximadamente 80% das exportações e mais da metade do orçamento governamental. O país é membro fundador da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), organização criada em 1960 e com objetivo de centralizar a política petrolífera dos países membros, permitindo que afetem diretamente o preço do barril do petróleo, seja ofertando mais, o que deixa o preço mais baixo, ou restringindo a oferta, fazendo com que o preço suba.
A descoberta do petróleo e a exploração comercial desse recurso, que teve início em 1920, foi extremamente importante para a economia venezuelana, pois o país era um exportador subdesenvolvido de commodities agrícolas, como café e arroz, não sendo autossuficiente em grande parte dos setores agrícolas. Em 1973, a Venezuela votou por privatizar o seu setor petrolífero, o que culminou com a criação da Petróleos de Venezuela (PDVSA).
Apesar de o petróleo ter sido um acelerador do desenvolvimento econômico venezuelano, o efeito multiplicador desse recurso na sociedade é muito menor, se comparado a outros recursos. Isso ocorre porque o ingresso de recursos se dá em forma de royalties que vão diretamente para o cofre do Estado, com isso, este torna-se o principal e decisivo condutor da economia.
Mesmo com as atividades de refino sendo realizadas internamente, a economia petroleira depende de um baixo número de investidores, além de ter o mercado interno pequeno e estável. Esses fatores fizeram com que a Venezuela apresentasse características estruturais de uma economia subdesenvolvida, como afirma Celso Furtado em “Ensaios sobre a Venezuela, subdesenvolvimento com abundância de divisas” de 1957. Ele também afirma que a dependência do petróleo poderia trazer um grande desenvolvimento econômico, caso fossem alterados os seus pressupostos básicos, pois da forma como se apresentava, o modelo era frágil, já que a riqueza gerada concentrava-se na mão de poucos.
A renda petroleira também serviu para financiar o Estado durante a década de 1970, quando a carga tributária não alcançava 10% do PIB. No ano de 1973 se deu uma das Crises do Petróleo, que teve como consequência o aumento em mais de 400% do preço do barril do petróleo. A Venezuela se beneficiou da subida de preço de uma maneira pouco saudável, pois permitiu um maior investimento na melhoria dos serviços públicos e também a nacionalização das indústrias petrolíferas em 1976, o que fez com que o país não só aumentasse seus gastos públicos, mas também sua dívida externa, que se multiplicou por dez entre os anos de 1974 e 1978.
A Crise do Petróleo de 1979 também teve grande impacto na economia venezuelana, já que a exportação do petróleo por parte dos países produtores foi afetada, o que fez o preço do barril bater recordes. Como consequência, observou-se a elevação dos juros internacionais, altamente prejudicial para a Venezuela, já que a dívida externa do país estava aumentando rapidamente. No final da década de 1980, quando o preço do barril diminuiu, as reservas do Banco Central venezuelano despencaram, a inflação disparou, o salário real teve uma diminuição drástica e houve uma intensa fuga de capitais.
Petróleo como arma política
Além das questões econômicas, o petróleo na Venezuela também serviu para moldar a política do país. Desde sua descoberta os líderes buscaram promover o setor do petróleo, além de tirar vantagem das variações do preço do barril. Entre os anos de 1974 e 1979, quando o preço do petróleo estava muito alto, devido à Crise do Petróleo que se iniciou em 1973, a Venezuela vivia um período de grande prosperidade sob a liderança do presidente Carlos Andrés Pérez.
Utilizando-se deste momento, Pérez candidatou-se à reeleição, o que ocorreu e em 4 de dezembro de 1988. No entanto, a crise do petróleo de 1980 teve graves consequências para a economia venezuelana durante aproximadamente duas décadas, causando reflexos na política. Em 1989, o governo anunciou que havia firmado uma parceria com o Fundo Monetário Internacional (FMI), com o objetivo de conseguir um empréstimo de 4,5 bilhões de dólares, e tinha como contrapartida um pacote que incluía a desvalorização cambial, redução do gasto público e do crédito, liberação de preços, congelamento de salários e aumento de preço de gêneros de primeira necessidade. Com tais medidas a gasolina sofreria um reajuste de 100%, o que acarretaria no aumento de 30% das passagens dos transportes públicos, que na prática acabou se tornando um reajuste de 100%.
Nesse sentido, a receita do petróleo fez com que Pérez fosse reeleito, mas a dependência do petróleo gerou grande insatisfação por parte da população, já que as medidas propostas pelo FMI para a liberação do empréstimo tinham impacto direto nesse setor, e o país tinha sua economia toda baseada na commodity. A insatisfação só aumentava, já que a necessidade do empréstimo não havia sido falada durante a campanha.
No dia 27 de fevereiro de 1989, a insatisfação atingiu o seu limite e começaram os primeiros protestos. Durante os dias subsequentes as manifestações tomaram as ruas de Caracas e de outras cidades. A semana foi marcada por saques, barricadas e enfrentamentos com as forças de segurança, que teve como consequência centenas de vítimas fatais e milhares de feridos, segundo familiares e grupos de direitos humanos. O evento ficou conhecido como Caracazo.
Ali teve fim o pacto político que tinha seus alicerces no preço do petróleo e que tinha possibilitado a convivência entre dois partidos de centro-direita, que se alternavam no poder, e que havia excluído setores populares da disputa política.
Ascensão de Hugo Chávez
No dia 6 de dezembro de 1998, Chávez elegeu-se presidente após vencer as eleições. O país vivia um momento de instabilidade, sem referências institucionais com credibilidade e passava por uma grave crise social. Hugo Chávez utilizou sua notoriedade adquirida seis anos antes e pautou sua campanha no combate à pobreza, para garantir êxito no pleito. A política era pautada na inclusão social, buscando a transferência de renda, o que fez com que ele se tornasse muito popular.
Um dos objetivos de Chávez quando chegou ao poder foi lançar a chamada Revolução Bolivariana, que teve início com uma Assembleia Constituinte em 1999, que visava escrever uma nova Constituição da Venezuela, com aprovação de 70% da população. Com a nova ordem constitucional, foi realizada uma eleição presidencial e legislativa, na qual Chávez se reelegeu presidente e o Polo Patriótico, composto pelos apoiadores do presidente, conquistou a maioria dos assentos na Assembleia Nacional.
No mesmo ano foi aprovada a chamada “Lei Habilitante”, que concedia poderes extraordinários ao presidente, o que permitia que ele legislasse acerca de matérias de seu interesse. Os decretos com força de lei entravam em vigor mesmo antes da aprovação por parte do Legislativo, já que fora criada para agilizar os processos administrativos. Chávez utilizou esse artifício para decretar a privatização do setor petroleiro, através da nova Lei de Hidrocarbonetos e também para dar mais velocidade à reforma agrária.
A lei permite ao presidente legislar sobre temas como segurança, infraestrutura, impostos, serviços públicos, finanças, dentre outros. A oposição criticou fortemente a Lei Habilitante, afirmando que ela dava poderes ditatoriais ao presidente.
Nos meses seguintes, vários outros decretos foram promulgados, gerando insatisfação em vários setores da sociedade e por parte da oposição. Apesar das manifestações e greves, o governo manteve todos os decretos, causando descontentamento também em setores como a Igreja Católica e as empresas privadas de rádio e televisão, que tiveram parte de suas concessões de funcionamento canceladas. A oposição agora acusava Chávez de querer tornar a Venezuela um país comunista.
Em 2002, após demitir gestores da companhia estatal de PDVSA e substituí-los por pessoas de sua confiança, Chávez sofreu um forte protesto pedindo a sua saída do poder. A oposição se apoderou do controle dos poços de petróleo da PDVSA, responsável por 95% da produção de petróleo venezuelana. A escalada de insatisfação foi tão grande que setores que antes apoiavam o presidente o abandonaram, tendo como uma figura icônica Luis Miquilena, um dos fundadores, junto de Chávez, do partido Movimiento V República (MRV).
A insatisfação atingiu seu auge em 2002, quando no dia 11 de abril manifestantes pedem a saída do cargo por parte de Chávez. O exército, antes grande apoiador do presidente, agora estava contra ele e, no dia seguinte, o general Lucas Rincón, chefe das Forças Armadas, anuncia que Chávez havia renunciado, o que foi posteriormente desmentido pelo presidente. No entanto, o presidente da Federación de Cámaras y Asociaciones de Comercio y Producción de Venezuela (Fedecámaras), Pedro Carmona, assumiu a presidência do país. A Fedecámaras era a principal opositora ao governo. Ficou configurado, assim, um Golpe de Estado.
Algumas das atitudes de Carmona foram a dissolução da Assembleia e os poderes judiciais, atribuindo a si próprio poderes extraordinários. Também prometeu eleições diretas em um ano. Essa sequência de eventos gerou um levante popular por parte dos apoiadores de Chávez. Soldados leais ao presidente deposto realizaram um contragolpe e retomaram o Palácio de Miraflores, com o vice-presidente de Chávez assumindo o poder temporariamente, enquanto o presidente era libertado da prisão na ilha de La Orchila.
A oposição continuava insatisfeita com o governo e realizou outras manobras na tentativa de retomar o poder. Após uma greve que paralisou o país durante nove semanas, a Coordinadora Democrática, uma coligação de partidos de esquerda e direita, organizou um referendo no qual pediam para os venezuelanos se pronunciarem sobre a permanência ou não do presidente. Com 58,25% dos votos a favor da permanência, o governo ganhou legitimidade.
Em 2006, aconteceu nova eleição, na qual Chávez saiu vitorioso para o seu terceiro mandato, ficando muito à frente do seu adversário. A eleição foi considerada legítima pela OEA e deu condições para o aprofundamento e expansão da revolução. Em 2008, foi aprovada uma emenda constitucional que permitia reeleições ilimitadas, a qual foi criticada pela oposição por se tratar de uma forma de dar legitimidade à ditadura sob a qual afirmavam que o país vivia. Apesar da sua vitória, Chávez nunca conseguiu ocupar o cargo em 2012, pois lutava contra um câncer. O então presidente faleceu no dia 5 de março de 2013, e Nicolás Maduro assumiu o poder por ser vice-presidente na época da morte de Chávez.
Mesmo com diversas greves que prejudicaram a economia e promoveram uma fuga de capitais, o governo de Hugo Chávez conseguiu realizar a distribuição de renda e a redução da pobreza, assim como havia prometido em suas campanhas presidenciais. No entanto, na busca de manter os programas sociais financiados pela exportação do petróleo, o governo foi forçado a adotar uma política de desvalorização da moeda, as quais têm surtido pouco efeito na melhoria de vida dos venezuelanos, já que o país é extremamente dependente de produtos importados, inclusive os de primeira necessidade, como alimentos e produtos de higiene pessoal.
Maduro, eleito em 2013 para um mandato integral, na primeira eleição após a morte de Chávez, chegou ao poder para dar continuidade ao trabalho que vinha sendo feito pelo seu antecessor. A vitória foi apertada, com seu opositor, Henrique Capriles Radonski, conquistando 49,07% dos votos. Porém, Maduro assumiu um país em meio a uma crise política que agravava a crise econômica pela qual o país passava. Com isso, sua taxa de aprovação despencou, o que levou a oposição a ganhar força com o pedido de plebiscito para a revogação do mandato do presidente.
Esse mecanismo está previsto na Constituição venezuelana, e diz que um presidente pode ser retirado do poder por votação popular. Desde 2016, a oposição tentava realizar o plebiscito, porém seria necessário o apoio de pelo menos 20% da população. As coletas de assinaturas seriam realizadas no final de 2016, mas foram adiadas pelo Conselho Nacional Eleitoral, o que foi extremamente ruim para a oposição, já que após o dia 10 de janeiro de 2017 Maduro teria cumprido metade do seu mandato, e, segundo a legislação do país, quem assumiria em caso de derrota do presidente seria o seu vice, inviabilizando o principal objetivo da oposição.
Assim, caso a oposição não consiga outra forma de contestar a legitimidade do governo, terão que aguardar até 2019, quando acaba o mandato de Maduro.
Assembleia Constituinte de 30 de julho de 2017
No início de maio de 2017, Nicolás Maduro convocou eleições para uma Assembleia Constituinte, responsável por redigir uma nova constituição venezuelana. A eleição foi marcada para o dia 30 de julho, conforme informado pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela. O anúncio foi feito pouco depois do início de uma nova onda de protestos e após o país ter anunciado a sua saída da OEA. Segundo Maduro, a nova constituição seria necessária para conferir maiores poderes à população e, assim, recuperar a estabilidade na Venezuela.
A oposição, no entanto, entendeu que a convocação da Constituinte era uma tentativa de ampliação dos poderes do executivo sobre a Assembleia Nacional e a Procuradoria Geral da República, não governistas. Seria uma continuação do que chamavam de “autogolpe”, quando os poderes da Assembleia Nacional foram transferidos para o Tribunal de Justiça, controlado pelos chavistas. De acordo com eles, a nova Constituição seria uma tentativa do governo para frear as eleições e se perpetuar no poder.
No dia 16 de julho, a oposição realizou um plebiscito extraoficial para consultar o posicionamento da população em relação à Constituinte. De acordo com a oposição, 7,1 milhões de venezuelanos compareceram às urnas para o plebiscito. O governo convocou, para o mesmo dia, uma simulação da Constituinte e a taxa de comparecimento declarada pelo governo foi de cerca de 11 milhões de pessoas.
Maduro não recuou e no dia 30 de julho aconteceu a votação que elegeu os 545 deputados constituintes. De acordo com o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) do país, a taxa de comparecimento foi de 41,53% e 8.089.320 pessoas votaram. Os números são contestados pela oposição, que afirma que apenas 12,4% dos eleitores venezuelanos compareceram às urnas. Diversas outras polêmicas e entraves permearam as eleições, marcada por manifestações (já anunciadamente proibidas, a fim de “não atrapalhar” o processo eleitoral) e mudanças repentinas nos horários de fechamento das urnas. Parte da comunidade internacional não reconheceu a votação. Vale dizer que a oposição fez resistência e não lançou nenhum candidato ao pleito, e alguns dos eleitos são reconhecidos apoiadores de Maduro, como o agora presidente da Constituinte Diosdado Cabello.
Eleições presidenciais de 2018
A eleição presidencial da Venezuela deveria, a princípio, acontecer no final de 2018, mas o governo a adiantou para que ocorresse em maio. Mais uma vez, os questionamentos centrais giraram em torno do número de eleitores que compareceram às urnas e reelegeram Nicolás Maduro. De acordo com a CNE, 46% dos eleitores venezuelanos participaram da votação, mas outras fontes do Conselho informaram à imprensa que, ao fechamento das urnas, o número era de 32,3%. Grande parte da oposição, formada pela MUD (Mesa da Unidade Democrática), resolveu boicotar as eleições por não a considerar legítima, uma vez que fortes concorrentes de Maduro, como Leopoldo López, estão presos, e há ainda acusações de que órgãos como o próprio Conselho Eleitoral são aparelhados ao governo.
O único forte concorrente de Maduro nas últimas eleições foi Henri Falcón, que rompeu com o boicote e fez campanha ativa. Obteve 1.820.552 votos, contra os 5.823.728 de Maduro. Pouco antes do anúncio do resultado, no entanto, Falcón declarou que não reconheceria o resultado das urnas e exigiria novas eleições. Segundo ele, as votações foram marcadas por fraudes e “pontos vermelhos”, núcleos de ativismo instalados próximas às urnas onde os eleitores poderiam vender seus votos a Maduro em troca de bonificações e serviços.
Mais uma vez, diversos países, entre eles o Brasil, não reconheceram as eleições venezuelanas, e classificaram o processo como fraudulento.
Pós-eleições e o duplo governo venezuelano
Desde as eleições, a instabilidade política e econômica na Venezuela se intensificaram ainda mais, atingindo na última semana o momento de maior tensão com ameaças diretas de intervenção dos Estados Unidos. Isso aconteceu depois que o então líder da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, se autodeclarou presidente interino da Venezuela, declarando estar ocupando um cargo que fora usurpado e reclamando novas eleições livres. As ruas de Caracas foram tomadas por manifestantes pedindo também a queda do presidente. Maduro já declarou que não renunciará e que “vai ao combate”. Desde então, 14 países, dentre eles o Brasil, já reconheceram Guaidó como presidente, e outros oito seguem apoiando o atual governo. Enquanto isso, os protestos crescem no país e estima-se que 35 pessoas já tenham morrido em decorrência da repressão.
Fontes: Ipea; G1 – Crise do Petróleo; Folha de São Paulo – Assembleia; CIA Factbook; BBC; El País
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